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quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Minha rima


A rima da minha arte é o descompasso dos meus lábios. A minha inaptidão do falar e a expressão escrita. Minha rima não tem sina, não tem dona e nem prontidão. Jamais domesticada, metricada ou mesmo regulada. Minha rima é um cão sem parentesco, sem passado, nem contexto. Não sabe se vinga ou se atiça. Vem, mas não permanece. Apenas se esquece do que lhe convém. É medo e desejo. Minha rima é assim como vira-lata que ladra e morde vez ou outra. Ela se arrepia no calor e busca lugar na escadaria das letras nobres. De nobres dos quais será eterna amante. Minha rima se esconde nos afrescos da paciência, nos recantos da beleza e debaixo dos pés da nobreza. Quase nunca a encontro dentro de mim e quando o faço vejo o quanto ela é carente e como um cidadão de papelão traço meu rumo sem identidade e sem ternura e me reciclando vou. Quem sabe assim minha rima não toma um prumo?


Sara Pautz.

sábado, 5 de novembro de 2011

LISBOA, Adriana

"Minha vida é o milagre banal da eternidade feita de presente, passado e futuro simultâneos - substâncias do mesmo sonho. Meus dias são todos de uma vez só. E eu me respondo com interrogações. Existo, até que deixe de existir. A maior transcendência é ter uma pele permeável e ser o que está do lado de dentro e ser o que está do lado de fora também."


(Adriana Lisboa)

Deixe

Deixe-me te abraçar até que a ponta dos dedos estejam dormentes.
Deixe-me lhe dizer com todas entonações o quanto lhe amo. 
Deixe que o beijo que lhe der na nuca estremessa todo teu corpo.
Deixe que os copos sujos de café amargo nos fitem de longe.
Deixe que, ao sair de casa, a chuva molhe tua face. 
Deixe que o frio gélido do vento da praia te carregue e conduza teus pensamentos. 
Deixe-se estar são.
Deixe-me ser o vão donde cabem todos os seres e todas as palavras entram em sintonia.
Deixe-se.
Deixe-me.
Deixe.





Sara Pautz.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

As Luzes

Míope como era, observava por cima dos óculos as luzes da cidade. E ria sozinha ao vê-las. Um tanto quanto abobalhada não concentrava-se no essencial, todavia enxergava além do que meros normais podem ver. "Que atire a primeira pedra o míope que não as acham engraçadas", pensava. Bailam sobre nossos olhos. Rabiscam a escuridão da alma. Estendem-se por traços ora definidos, ora mal passados. Rezam por nosso ser tilintando veredas de energia. Naquela madrugada sombria as luzes brincavam como crianças na imensidão do vácuo. O caminho para casa parecia cada vez mais longo. Seu capuz negro escondia seus olhos míopes da visão de quem quer que seja. Apressou-se. Ouvia ruídos perto de si. As luzes já não lhe apareciam mais. No entanto, ao longe pôde ver a mais linda delas vindo em sua direção seguida de um estouro. Pena que a mesma seria a última a passar diante de seus lindos olhos míopes. Aquela bala perdida encontrara onde se repousar na fria madrugada de domingo.






Pautz.

Voraz

Movimentos contínuos sob a escuridão da noite. Passos ao longe e gritos distantes. O pedestre curioso se atreve a olhar o rapaz em sua jornada. O qual movia os braços em ritmo acelerado como se atacasse uma presa voraz. Seus olhos mais que atentos comiam o ser em sua frente. Ao terminar sentiu-se satisfeito ao ver sua obra-prima grafitada na parede.


Sara Pautz.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Bicho papão

A pequena menina sempre tivera olhos brilhantes e verdes. Seus pés sempre pisaram nus o árido e frio chão. Os bichos papões jamais a tocaram por debaixo de sua cama. Todavia, enquanto seus olhos embaçavam podia ver os contornos de seus desenhos feitos na parede. Obra de arte típica de uma criança de seis anos. A chuva caía lá fora no mesmo ritmo de suas lágrimas O ambiente todo era proposto para um adulto e seus murmúrios em forma de lápis na parede eram seu refúgio na busca de abrigo da infância. Seu coração palpitava desesperadamente e seus ouvidos já não suportavam aquele mal estar. E naquela noite, assim como muitas outras, seu assombro e sua tristeza eram devidos aos seus bichos papões interiores transfigurados na voz embriagada e exaltada daquele a quem ela chamava de herói.

Sara Pautz

sábado, 15 de outubro de 2011

Disseram

Disseram-lhe, certa vez, que não se deve ter pressa na prece nem prece na pressa. Que a prosa tem que ter reciprocidade. Que a verdade condena a vaidade de condes e fadas, de traças falsas e afagos de dor. Que o medo é o chão donde o vão reverbera à alma e a sanidade não testemunha a real vontade. Disseram que na vida deve haver uma saída. Que deve existir uma válvula de escape pra tantos enlaces serem refeitos e que há tantos perfeitos no mundo que já não existe mais fundo do poço. Disseram que o moço da cocada passou pela janela de Assis procurando por Capitu. E que tu que lês não sabes quem és. E que meus pés me levarão para perto do vão que não há fundo mas cabe meu mundo.







Sara Pautz.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Repugnância

Viam aquele mendigo sentado no chão do ônibus. Tampavam as narinas para afastar o cheiro. Zombavam. Riam. Porém o que não percebiam era o fato de que aquele desagradável odor era, na verdade, a podridão de suas fétidas e repugnantes almas.

Sara Pautz.

Inundar

Em um mar de profundas ilusões viu-se inundar de pensamentos e pensou estar se afogando. Curvou o rosto para cima e pôde então ver que o chuveiro estava aberto molhando sua pequena face.

Sara Pautz.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

A compra da felicidade

"Compre aqui seu ingresso para o pula-pula", dizia a placa. A criança de olhos brilhantes, boquiaberta mal pôde perceber seus minutos de felicidade sendo comprados. Sorria como se não houvesse amanhã. Gritava. Pulava. Todavia, o que não lhe saía da mente era a ausência. Sua felicidade jamais seria comprada por tão míseros trocados. Queria carinho, afeto, amor... Pais presentes em corpo, mas a alma tão distante da sua. A pequena menina podia notar isso. Seu sorriso se dissipa, desaba a chorar, porém no vai-e-vem dos pulos da mentira ficaram por isso mesmo seus tristes minutos de felicidade comprados.